6 possíveis explicações para a pornografia de vingança
Não existe resposta única. A pornografia de vingança, como a maioria dos fenômenos tecnológicos ou comportamentais, não pode ser explicada por uma ou duas razões definitivas. “É preciso tomar cuidado com a pergunta ‘Por que as pessoas fazem isso?’”, diz Luli Radfahrer, professor de comunicação digital da USP (Universidade de São Paulo).
“Talvez elas façam porque querem, porque podem, porque são livres.”
Apesar da imprecisão, alguns fatores abaixo podem ajudar a entender como fotos ou vídeos íntimos são tirados e acabam indo parar nas mãos de uma rede de desconhecidos. Mostram também como a vítima se torna culpada por um crime cometido contra ela mesma.
1. GERAÇÃO CONECTADA E LIVRE
Os jovens de hoje são mais tecnológicos e mais acostumados com a exposição do corpo. “Para pessoas mais velhas, enviar um nude (foto própria de nudez) é impensável, mas para a nova geração é normal, porque ela já nasceu no meio de tudo isso”, afirma Radfahrer.
Segundo estudo do Datafolha*, 24% dos adolescentes de 12 a 15 anos recebeu seu primeiro smartphone antes de completar dez anos de idade. Já os adultos maiores de 25 anos só adquiriram esse tipo de aparelho com mais de 30 anos (47%).
Nesse ambiente de conectividade e redes sociais, tudo é compartilhável – desde a prática mais banal até o que se faz entre quatro paredes. E não só entre as classes média ou alta: “Hoje em dia os celulares com internet também são a principal forma de comunicação entre os jovens na periferia, eles se expõem da mesma forma”, acrescenta a socióloga Carolina Parreiras.
Uma pesquisa on-line feita para esta reportagem, que contou com 637 respostas, mostrou que 72% das pessoas já receberam fotos íntimas ou vídeos pessoais de terceiros. A plataforma “vencedora” para o compartilhamento desse material foi o WhatsApp (87%).
2. EDUCAÇÃO INSUFICIENTE
A escola empurra a responsabilidade para os pais, e os pais empurram para a escola. Acaba, portanto, faltando orientação adequada a crianças e adolescentes sobre sexualidade e tecnologia. “As famílias e os colégios não estão acompanhando a dimensão do que essa geração está vivendo na internet”, critica Juliana Cunha, coordenadora psicossocial da Safernet, ONG que presta auxílio a vítimas de pornografia de vingança. “Junta-se a esse desconhecimento dos adultos o fato de que sexualidade ainda é tabu.”
Para Neide Saisi, coordenadora do curso de pedagogia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica), o buraco é ainda mais embaixo: “O menino ou homem que divulga esse tipo de imagem não aprendeu quando era pequeno que fazer fofoca é errado. Devemos ensiná-los a usar a tecnologia de maneira ética, desde o berço, respeitando o outro no dia a dia.”
3. AMBIENTE COMPETITIVO
Você foi passado para trás em uma sociedade competitiva. Essa é a ideia que pode fazer com que alguém que foi “abandonado” ou traído exponha o outro. “Poder negociar a intimidade de alguém é como ter um pequeno poder. Normalmente pessoas que acuam o outro, que querem extorquir o outro, têm sérios problemas de autoestima ou não sabem lidar com perdas”, afirma o psicólogo e terapeuta sexual Paulo Tessarioli.
É também uma forma de se afirmar dentro de um grupo e apagar a impressão de que se foi rejeitado. “Eu reduzo você a um objeto pornográfico, e então eu não fico diminuído por ter te perdido”, complementa Luli Radfahrer, defensor de que a autoafirmação serve ainda para explicar o julgamento sofrido pelas vítimas: “Quando a foto de uma menina aparece na internet, as pessoas falam ‘Ela é uma vagabunda’. É um jeito de você se valorizar desvalorizando o próximo”.
4. CULTURA DA PORNOGRAFIA
Por que essas fotos se espalham com tanta facilidade? Desde que mundo é mundo, sexo desperta interesse, e não só entre homens. O Brasil ocupa o oitavo lugar na lista de países que mais acessam conteúdo pornográfico, segundo dados de 2014 do site Pornhub. Aqui, 29% dos consumidores é mulher. “A partir do momento em que algo envolve sexo, pode tomar uma proporção inimaginável”, afirma Carolina Parreiras, socióloga e pesquisadora na área de pornografia na internet.
Em alguns sites pornográficos, existe até a “tag” (termo que ajuda na busca de um conteúdo) “revenge porn”. “A partir do momento em que as grandes produtoras de pornografia começaram a falir, muita gente passou a produzir esse tipo de conteúdo dentro de casa e colocar isso on-line, ainda mais com a chegada das câmeras ao vivo”, explica a socióloga. “A pornografia de vingança é o vídeo amador deturpado, com a diferença de que ela tem a função de prejudicar alguém.”
5. MACHISMO
A pornografia de vingança é um problema de gênero. Mesmo que homens e mulheres produzam e compartilhem imagens sensuais, são elas que acabam sofrendo com a exposição. Em 2014, 81% das vítimas atendidas pela ONG Safernet era do sexo feminino – o restante, em sua maioria, era de homens homossexuais, de acordo com a coordenadora psicossocial Juliana Cunha.
Isso acontece por duas principais razões, segundo a jornalista Juliana de Faria, criadora do blog feminista Think Olga: “Primeiro, porque o corpo da mulher é hipersexualizado, não é visto só como um corpo, e sim como uma ferramenta sexual. Segundo, porque a mulher sempre foi entendida como um ser que deve ficar no ambiente privado. A partir do momento em que ela cai na internet, precisa ser punida ou se sentir envergonhada. É uma forma de colocá-la no lugar dela”, diz a jornalista. “Não é algo que as pessoas pensem conscientemente, claro, mas já está dentro da gente, porque vivemos em uma sociedade patriarcal.”
6. JULGAMENTO
Muito ligado ao machismo, o julgamento é o ponto que tem mais impacto na vida das pessoas que foram expostas – chega até a levar algumas delas ao suicídio. É também o que transforma as próprias vítimas em responsáveis pelo crime. Uma reação comum em casos de pornografia de vingança, tanto entre homens quanto entre mulheres, é: “Mas também, por que é que ela foi tirar fotos pelada? Era óbvio que isso ia acontecer”.
“Sempre que vaza alguma coisa que se choca com os valores que a sociedade defende, ela se manifesta para mostrar que é contra aquilo. É como se cada um fosse um representante dessa moral e desses bons costumes”, explica o psicólogo e terapeuta sexual Paulo Tessarioli.
Para o professor de comunicação digital Luli Radfahrer, julgar a vítima é um segundo crime, tão grave quanto o de espalhar as imagens. “O grande problema acontece quando a vítima é rejeitada, tanto pelo seu próprio grupo quanto pelos outros. Ela já está totalmente fragilizada e ninguém mais fala com ela, ninguém quer chegar perto dela. É a solidão e o julgamento prévio que matam.” E conclui:
“A pornografia de vingança só vai acabar quando um nude se tornar tão normal quanto uma foto de biquíni.”
*estudo feito em junho de 2015 com 2.437 brasileiros a partir de 12 anos
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